quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Confessionário

- Já disse, a mais santa de todas aqui sou eu. Maria de Lourdes.
Todas riram e Lourdinha virou o copinho de cachaça com gosto. Subiu na mesa sem pudor entre as pernas.
-Riam, podem rir! Mas lá no purgatório vocês vão implorar para que interceda junto à Deus e garanta suas vagas no céu ... Aí é que eu quero ver esses sorrisos amarelos pra cima de mim...
- A gente quer é ir se divertir no inferno Lourdinha! De vez em quando a gente te visita, porém... O que vai ter de santo pedindo que você interceda só um pouquinho por eles e faça uma festinha.... Mas alias... como você vai fazer pra ser santa mesmo, hein?!
As outras moças fizeram o sinal da cruz. A novata ainda não entendia que ninguém ali queria ir pro inferno. Estavam na "sociedade" para viver um vida simples..."duas mudas de roupa, como a fundadora"... mas essa é uma outra história. Lourdinha respondeu, certeira, enfrentando a novata, olho no olho.
- Fácil! É só pegar todos os meus pecados e compensar com os milagres da santa. Sobra crédito. no céu já. Garantida. Mainha que foi inteligente, me fez santa no batismo.
- Mas você nem sequer é batizada, Lourdinha! Deixa de conversa ...
- Não sou não é?! Quem te disse! Batizadissima... Com direito a madrinha, padrinho e nome de batismo.
- Só se for nome de guerra! Ora veja!
Lourdinha fez pouco caso, mas seu semblante mudou. Parecia preocupada. Não tinha pensado nessa problemática do batismo.
Eram ainda quatro horas quando o padre João chegou para sua visita diária. Putas castas se confessam. Discreto que só ele, entrou pela porta dos fundos. Foi na cozinha pegar um copo de agua, quando foi surpreendido por Lourdinha.
-Padre João, faz favor.
- Diga querida.
- Mas é segredo, viu? De não contar pra ninguém, promete?
- Mas veja bem o que você vai me contar Lourdinha! Se nem você consegue guardar esse segredo, como pedir que eu o faça, hein?!
- Oh Padre João! Não complica as coisas! Só me faz um favor, bem depressa e escondido. Me batiza. Só falta isso para virar santa.
Padre João, caindo de amores por Lourdinha fez que ia rir... ela interrompeu qualquer possibilidade de riso.
-Ou me batiza ou vai embora e é agora mesmo.
Padre João tentou dizer que se acalmasse, se aproximou aos poucos, mas ela, arredia, aumentou o tom de voz
- E se você não fizer o que eu to pedindo... nunca que eu vou deixar meu Deus lhe receber no céu. Assim que eu virar santa ponho seu nome no livro e te proíbo de entrar. Entendeu Padre João?!Ouça o que eu digo. Se não for você vai ser qualquer outro e como quem batiza santa já é, quase automaticamente, santo... veja a oportunidade que vai perder!
Padre João, doido que era por Lourdinha, só não tão doido para perder a batina, a vaga no céu ou a chance de ser santo, colocou um pouco de agua no copinho de cachaça que Lourdinha segurava, abençou a agua e a batizou:
-Maria de Lourdes, em nome do pai, do filho e do espírito santo.
A noite já caia e Padre João precisava correr para rezar a missa das seis. O sermão sobre Maria Madalena lhe trouxe sonhos à noite.
Às seis e meia Lourdinha recebeu o velho Amaranto no seu quarto.
Ele doido para -la pecando, quando soube que a moça seria santa a pegou no colo e disse:
- Venha minha santinha, venha, que quero ver você fazer milagre dos meus pecados.
Lourdinha riu, tranquila, depois acendeu uma vela, não sem antes derramar a cera no velho Amaranto, penitência pelos pecados e a colocou no altar, iluminando o sorriso da santa. Quase tão mistérioso quanto o de Lourdinha... talvez também houvesse outra santa antes dela.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

faz

me aparece, me impele, me entorta e me entorpece.
me envolve, me solta, me acende e me devolve.
me enlaça, me enseja, me beija e me abraça.

então desimpeço.
me dispo e me disponho.
despo s s u o - m e.

suo frio.
sôo diferente.
sou.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Alhures

Percorro espaços que não são meus
Em verdade, nada aqui me pertence
Assim como eu pertenço a nada
O que me enlouquece
Em paralelo, aquece:
Não ter responsabilidade sobre o ser
Não sofrer por aqui não caber
E eu sou toda invasão dos outros
Busca incessante de identidade de mim
Em pequenas frestas esquecidas,
Abertas.
Invado sem escrúpulos:
Suas roupas
Seus gestos
Seu cabelo
Tudo o que não é meu
Certa que sou de que não há nada aqui há tempos,
Me debruço em fantasias
Sem remetentes,
Que me comovem em sutis lembranças
Do que não mais é.
Não decifro.
Não desenrolo.
desaconteço.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Qual o doce mais doce?

As bruxas conversavam.
-Experimenta o meu veneno.
Pingou uma gotinha na língua.
-É doce...não pode ser veneno.
- Ah é?!Então, experimenta beber perfume de flores para ver se a doçura não mata.
-Mata nada. Oque mata é o alcool... e não a essência.
-Então come trinta bombons pra ver se não morre...
-Não de doçura...
-Pois, quer apostar que te mato com doçura?
-Duvido. Duvido. Duviiii...
-Ei, não repete três vezes que você sabe que quando fazemos feitiço três vezes é a conta certa. E não estou disposta a ter uma dúvida passeando aqui pela sala... dá um trabalhão depois. É pior do que dragão.
-Mas então... prova que me mata com doçura.
-Ah! Agora fiquei com preguiça...depois.
-Tá vendo! Não pode! Não pode! Não pooo...
-Eiiii.... segura essa boca! Que mania de atrair complicações! Já te disse repitiu 3 vezes e pumba... lá vem a impossiblidade... aquele bicho gigante... pra se livrar depois da um trabalhooo
-Ai, você é muito chata, viu? Nunca vi!
-Viu sim! Aqui óó! Mas tá certo então... te ensino o meu veneno doce.
A bruxa abre um frasquinho e joga no caldeirão. A outra bruxa observa atenta.
-Pois então... toma do meu veneno.
-Mas... você disse que mata... ai eu vou acabar morrendo se for verdade... não quero pagar um preço tao alto pela minha descrença. Que medo, que medo, que meeee...
-Psiuuuuuu... não repete! Esse tal de medo é muito carente... ele começa pequenininho e de repente você nem mais sai de casa para ficar cuidando dele. Prometo que se você morrer de doçura eu te trago a vida de novo.
-Hum, tá certo então. Mas promete, promete, promete???
-Prometo, prometo, prometo. Pronto, não tem volta. Tá ali o compromisso já sentado no sofá!
Gut Gut Gut
-Ahhhh... me sinto tão bem com esse seu veneno! Nem parece veneno. Me sinto tãoooo....doce!
-Te dou três dias e a doçura acaba contigo.
-Mas como? Não pode ser! É tão bom ser doce... até Merlin o gato veio me fazer carinho atraido pela minha doçura.
-Doce ilusão.
-Leite, gato Merlin? Claro que eu providêncio leite para você, novelo de lã,sim claro!Quer carinho? Sim sim!
Três dias depois.
-Compromisso. Chama a bruxa para me salvar. Estou me sentindo tão fraca,cansada...estou tão enjoada que parece que comi uma barra inteira de chocolate branco sozinha.
-Pessoas doces acreditam em promessas... Promessas e compromissos não são sempre cumpridos. Estou tão ocupado agora com outras coisas, bruxa doce, que você ficará para segundo plano.
-Mas... em voce eu acreditei Sr Compromisso, em você depositei a minha vida. Se você não chamar a bruxa eu morro de doçura. Não aguento mais. Me sinto mais doce e enjoada que chocolate quente.
-Olha, vou te dar uma dica bruxa doce. Seja doce... mas nao seja excessivamente doce.Olha... não vou poder te ajudar não bruxa doce...estou cheio de outros compromissos inadiaveis.
-Tudo bem Sr compromisso, eu entendo o seu lado... Estou agradecida pelo conselho... espero hoje ainda ter vida para por em prática... Bruxa, Bruxa, Bruxaaa
-Ai Meus Deuses! Quase não da tempo de me enrolar na toalha.
-Desculpe, amiga bruxa, mas preciso de você.
-Ah! Bruxa doce! Mas você é muito da enjoada, viu?! Não vê que está me atrapalhando! Estou lá, animada na minha cantoria no banheiro e voce me chama porque tá morrendo de doçura.... Ah! Me poupe viu??
-Mas Dona Bruxa, me desculpe o incoviniente...mas só posso contar com você...
-Comigooo??? Nao nao na...ops... não quero o não aqui em casa hoje... ele demora muito pra se tocar da hora de virar sim...
-Tudo bem , Dona Bruxa... morrerei de doçura... aqui quietinha, resignada no meu canto, sem ninguém nem notar. Não quero incomodar mais ninguem... Desculpem por existir...
A outra bruxa desapareceu e a bruxa doce começou a chorar. Suas lágrimas eram tão, tão, tão doces que as formigas começaram a devora-la e ela sem coragem de reagir foi feita de almoço.
-Ai ai ai... Onde será que anda a bruxa doce?? Sai dai Gato Merlin! Ossos??? Será??... Tomara que ainda dê tempo. Preciso tanto da companhia da bruxa... doce ou não... não suporto viver só nesse casa.
Então a bruxa recolheu os ossos, os limpou, removendo o resto de doçura e colocou um por um no caldeirão. Completou o caldeirão com muitas batatas doces e...
-Ai, que caldeirão pequeno!!! Me tira daquiiiiii...
-Bruxinha! Queria amiga bruxaaa... que bom ter voce de volta!!
-Doce de batata doce? Há quanto tempo não vejo isso aqui em casa! Que forma mais inusitada de quebrar um feitiço!
-Pois é... não sabia como fazer...então achei que as batatas doces, do doce mais doce, talvez neutralizassem sua doçura! Acho que funcionou! Mas então, como foi ser doce?
-Foi assim... docemente mortal! Mas sabe bruxa... o que mata não é a doçura não, não é a essência que mata... é o alcool... e no final arsênico parece açúcar. Vai um cafézinho?

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Calma

Uma poesia, uma arte ou uma crônica? Não sei, tanto que deixei pra colocar o título por último, como manda o figurino e a minha professora da 4ª serie no Universo do Guri.

Tinha mais de 2 meses que eles nem se viam. Pelo telefone estavam se falando cada vez menos. Tudo bem que o melhor para os dois era se afastarem; mas até hoje eu tenho dúvidas se eles conseguiriam, não fossem os 40Km que separavam as suas casas.
Antiromântico e antipoético uma estrada separar dois corações. Ainda mais em tempos atuais, onde os que prezam pelo romance fazem as mais inusitadas coisas para impressionar e mostrar que o amor rompe barreiras, alem daqueles que em contrapartida desistem dessas coisas de flores, etc...
Mas foi assim mesmo que tudo aconteceu. A menina tava triste, com dúvidas no seu coração. Sabia até que era capaz de resolver aquilo tudo, mas não sabia se queria. Como seria possível isso, se tudo o que ela mais queria era ele alí? Para ele, era ela pra tudo. Pra quando tava triste... qualquer tipo de tristeza. Para quando tava feliz, simplesmente morrendo de saudade. Até pra quando tava embriagado, quando sua risada parecia boba, mas quando era mais sincero e dizia até que lhe amava. E para ela, ele tambem era tudo. Tudo que fazia ela sorrir, que fazia ela descansar, que fazia ela sentir uma forma verdadeira de amor.
E nos contratempos da vida ela resolveu mudar. Talvez o problema tenha sido esse. Talvez se ele tivesse resolvido mudar... mas não foi. Ela resolveu mudar. Fez na sua cabeça uma lavagem cerebral daquelas que nos autofazemos quando queremos nos convencer de uma coisa que não achamos, sabe? Pois é. Começou a achar que o amor declarado perante litros de cerveja era a mentira que não conseguia dizer quando estava sobrio. Começou a achar que a afinidade era forçada e que ele nem tinha tanto a ver com ela. Começou até a achar que o amor que existia entre os dois, e que pelo menos aquilo era real, não passava de mais uma forma que o charlatão usou para prendê-la. E tudo começou a desandar...
E foi assim que se desaproximaram... que os 40 Km tornaram-se uma viagem... que até a cor das suas cútis era um sinal de disparidade.
E foi numa madrugada dessas que ele resolveu se despedir. E eles se despediram. Obviamente que foi numa madrugada de lua cheia. Acho até que não foi coincidência. Acredito que a lua o animou. Telefonou e ela antes de atender pensou que ele estava bebado. Após ela se mostrar tendenciosa a aceitar uma visita sua, ele pediu 5 minutos, dizendo que ligava rapidamente, que ia apenas fazer xixi. Botou uma roupa, passou o perfume que ela gostava e entrou no carro naquele comecinho de madrugada. Ligou denovo só do carro, acho até que cumprindo o prazo prometido. E ela só acreditou que ele estava enfrentando os 40 Km quando ele businou muito, até ela pedir pra ele parar! Desligaram e cada um curtiu a mesma ansiedade que tiveram da primeira vez que se encontraram. Nos dois o sentimento de não caber em si de alegria. Uma alegria de ver o amor, de saber que o amor ta chegando e que são so minutinhos que os separam. Mas, interrompidamente vinha tambem a certeza de que seria a ultima vez... E foi. A noite foi maravilhosa pros dois, o beijo, os carinhos.
Não mais se viram. Uma troca de telefonemas de 3 minutos na data dos aniversarios e nada mais. E de vez em quando algumas lembranças que os fazem se lembrar de tudo e até escrever textos em prosa, dizendo que é crônica.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Carta

Querida,

As cerejas aqui estão doces. Estou saindo muito para passear. A vida na vila continua como você a conheceu, aquela calmaria... De manhã cedo é ainda escuro, depois vem a névoa que embranquece todo o horizonte e esconde o topo da montanha, bem na frente da janela da sala de jantar. Mas a noite só vem bem tarde, quase quando já temos sono, bem na hora de tomar uma sopa, jogar baralho e deitar para dormir. Nos domingos tem a missa. O padre ainda coloca todas as crianças no altar para distrai-las. A missa continua breve, a igreja de pedra fria. No final levo umas flores para sua vó. Sinto saudades da rede na varanda, do calor e das conversas. Do mais, aqui me basta. Devo admitir que preparar-me para uma vida assim não estava nos meus planos por agora, mas como você bem sabe, quero organizar tudo muito bem antes de ir e aqui me parece um bom lugar para amenizar despedidas. Semana passada, porém, aconteceu algo que me deixou meio perplexo. E te conto por que sei que você é a única que entenderia. Chegou um forasteiro, seguindo o caminho de Santiago de Compostela . Estava no Cruzeiro, era de tardezinha e eu tinha ido de bicicleta, tentando passar o tempo. Até ri lembrando de quando vinhamos passear, quando você era bem pequena e ficava imaginando encontrar um filhote de urso para levar para casa... e eu sempre te pegava no colo, te punha de cabeça para baixo e falava que era mais fácil achar um filhote de javali! Você saia correndo, rindo... mas ficava sempre perto dos nossos olhos com medo do javali aparecer! Funcionou por algum tempo, lembra?! Até você decidir que medo não existia. Já tem tantos anos isso! Uns 15? 16? Mas voltando ao assunto, para não me alongar muito nessa carta. Apareceu um forasteiro na vila e o encontrei lá no cruzeiro. Ele tinha uma aparência suja, embora de olhar muito carinhoso. Já estava perto de anoitecer e me perguntou se havia algum lugar onde podia se hospedar antes da noite cair. Eu não ri, porque não riu para estranhos, mas disse que podia dormir no palheiro, que era o lugar mais confortavel que encontraria naquelas redondezas e imaginei que ele entenderia a piada. Ele não percebeu que estava brincando e aceitou minha sugestão. Descemos juntos a rua de pedra, ele voltando o caminho que tinha avançado e eu empurrando a bicicleta. Não trocamos uma só palavra, mas ele ganhou minha simpatia. Já não sabia mais para onde leva-lo, já não existem palheiros aqui como antigamente. Então o trouxe para casa. E é isso querida, que preciso contar-te, o forasteiro ficou. Já tem dois dias que vem dormir. Passa a tarde inteira no rio gelado e volta quando escurece trazendo as garrafas cheias de agua da fonte, cerejas e sempre uma nova história. Me perguntou se podia ficar uns dias, que estava cansado, que me pagava bem... e eu não pude negar... aceitei.... Não sei, mas acho que atras daquela barba suja... é seu tio. Não conte para os outros... as vezes o coração quer acreditar. Sei que não passo perigo, então fique tranquila e mande beijos para os seus.

"Quando olhaste bem nos olhos meus..."

Acordou ainda zonza do que vivera na noite passada. Não sabia administrar esses pequenos vícios humanos, há um tempo se adaptara ao que de costume a lei permite, mas é confuso, às vezes, pensar que a lei, que foi inventada, pode autorizar pensamentos interessantes sobre a possibilidade de se perder a consciência. E era isso que buscava, já sabia. Perder a consciência mesmo que por algumas horas, sem que causasse um dano a sua integridade moral, porque, assumemos, não passa de uma questão moral, e nesses instantes milagrosos de meia ausência de censura, achar-se imensa, escapando por todos os poros e flutuando entre desejos, olhares, toques e gozos.
Mas era interdição. Todo o resto era interdição e o que lhe restava causava enjôo, não dava certo todas as vezes, causava sono também, e vez ou outra sua pressão despencava nos andares da alma... Dessa última conseqüência não reclamava, sentia como mais uma forma de se abster do consciente.
Fora a vontade que lhe tomava todas as vezes que existia a possibilidade de não se medir, era só cautela. Vivia escondida nos meandros de si mesma, querendo que outros a vissem sem precisar se mostrar, querendo ser uma lente transparente que chamasse atenção pelo cheiro, pelos gestos e pelo jogo dos olhos. Mas sem precisar se desdobrar em palavras e nomes e títulos e glórias. Queria o reconhecimento da beleza singular de todas as almas, em sua sutil singularidade de ser banal... quando, de todo modo, nunca se é; queria olhos que se voltassem até ela pelo perfume de sinceridade que queria exalar para o mundo, não uma sinceridade dessas que fala demais, mas só a simplicidade de não ter que provar. E sempre que procurava exalar-se de si, era na tentaiva de deixar essa mistura transparecer a outros olhos e aos seus mesmos.
Pois bem, havia então o estrangeiro esquisito, e ele dava calafrios por prestar atenção demais. Estava atento a cada detalhe, a cada cor que ela usava, nos modos que cruzava as mãos e as pernas, no jeito em que tocava o cabelo, na expressão dos olhos e no suor que corria sempre que ficava tímida. Era estranho porque eles pouco se conheciam, ela pouco o conhecia, ela quase não o via, e ele parecia saber tanto, era como se ele pudesse desvendar nela o que ela queria que o mundo visse. Eram os detalhes. O mundo é composto de detalhes, ela semrpe pensou, mas ele tornava isso real. E não havia nenhuma ligação entre os dois, não havia afeto, não como de costume, havia uma curiosidade assustadora, e ela se sentia lida por ele, mesmo sem trocar mais de uma dúzia de palavras. Aquele estrangeiro que ela não sabia de onde vinha lhe causava a sensação que queria ter quando se embriagava, sem nunca se embriagar. Ele era a personificação do que ela queria dos outros . Era um simples jogo de ego. Era só isso e assustava por ser o reflexo que ela queria de seu próprio ego. Ela era, através da fala dele, a representação do que ela queria ser para os outros, então de algum modo ele provava que tudo que o que ela desejava quando bebia, podia existir. Sim, se alguém podia capturar aquela fotografia, aquele filme que ele conseguia dela, é porque de algum modo ela conseguia exalar aquele perfume. E era simples para ele demonstrar isso, apesar de mal se conhecerem, de não existir o comum afeto e de ser assustador.
E então, quando seu desejo se via refletido e reproduzido por aquele corpo estrangeiro, ela não sabia mais ser e acordava em ressaca da noite anterior.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

rouco

havia já algum tempo, ele deixara de usar relógio. de pulso. pois seu celular permanecia consigo o tempo todo. mudou sua proteção de tela para um relógio digital. um paradoxo na linha evolutiva da tecnologia: relógio de bolso. não tinha certeza se obtinha o resultado almejado: a ansiedade aumentava com toda aquela movimentação para olhar as horas. passava já das sete e meia e no entanto o trânsito em sua província com síndrome metropolitana matinha-se congestionado. não que estivesse lento, estava parado! pensava em quanto tempo havia perdido, literalmente, naquele ônibus. sem poder fazer absolutamente nada. olhou para suas pernas e mudou de idéia. descia no próximo ponto, bem distante de sua casa.

ah! a sensação de liberdade era incrível... com seus passos tranqüilos ele sorria enquanto ultrapassava todos os carros que berravam por suas buzinas a epidemia de estupidez. sentia pena, eles não tinham motivos para salvar seus dias. o dele havia sido iluminado pela presença de um amigo afastado, mas que tirara um dia para curtir a amizade e ser útil no que fosse preciso. haviam bebido. havia um porre de rum e uma ressaca iminente. seu rim havia trabalhado bastante até então, resolvera suar um pouco. não achava ruim.

parou de olhar os homens. tentava recuperar o olhar virginal sobre as esquinas de sua cidade, aquele olhar sempre atento e admirado com o novo que as crianças e os turistas sempre têm. subiu na bancada que boredejava a praia: um ébrio buscando o equilibrio na beira do abismo da areia branca que antecede o mar escuro e afasta o asfalto.

cantava alto, sozinho e invisível, apesar de quase louco. só ele ouvia. caminhava de olhos fechados por alguns segundos e despertava às gargalhadas. o céu clareado pela lua senhora de si. só ele viu. "deixo que o mar mergulhe em mim" gritava aos ventos que sopravam surdos enquanto abria os braços de espuma branca para acariciar a areia. tirou a camisa e refrescou o peito. "deixo que a lua me beije, me deixe!" um beijo longo estalando luz por todos os lados. só ele sentiu. correu nu para o mar recitando a poética do ritmo das cores, solta. solto. entrou no escuro e nunca mais foi visto.