- Já disse, a mais santa de todas aqui sou eu. Maria de Lourdes.
Todas riram e Lourdinha virou o copinho de cachaça com gosto. Subiu na mesa sem pudor entre as pernas.
-Riam, podem rir! Mas lá no purgatório vocês vão implorar para que interceda junto à Deus e garanta suas vagas no céu ... Aí é que eu quero ver esses sorrisos amarelos pra cima de mim...
- A gente quer é ir se divertir no inferno Lourdinha! De vez em quando a gente te visita, porém... O que vai ter de santo pedindo que você interceda só um pouquinho por eles e faça uma festinha.... Mas alias... como você vai fazer pra ser santa mesmo, hein?!
As outras moças fizeram o sinal da cruz. A novata ainda não entendia que ninguém ali queria ir pro inferno. Estavam na "sociedade" para viver um vida simples..."duas mudas de roupa, como a fundadora"... mas essa é uma outra história. Lourdinha respondeu, certeira, enfrentando a novata, olho no olho.
- Fácil! É só pegar todos os meus pecados e compensar com os milagres da santa. Sobra crédito. Tô no céu já. Garantida. Mainha que foi inteligente, me fez santa no batismo.
- Mas você nem sequer é batizada, Lourdinha! Deixa de conversa ...
- Não sou não é?! Quem te disse! Batizadissima... Com direito a madrinha, padrinho e nome de batismo.
- Só se for nome de guerra! Ora veja!
Lourdinha fez pouco caso, mas seu semblante mudou. Parecia preocupada. Não tinha pensado nessa problemática do batismo.
Eram ainda quatro horas quando o padre João chegou para sua visita diária. Putas castas se confessam. Discreto que só ele, entrou pela porta dos fundos. Foi na cozinha pegar um copo de agua, quando foi surpreendido por Lourdinha.
-Padre João, faz favor.
- Diga querida.
- Mas é segredo, viu? De não contar pra ninguém, promete?
- Mas veja bem o que você vai me contar Lourdinha! Se nem você consegue guardar esse segredo, como pedir que eu o faça, hein?!
- Oh Padre João! Não complica as coisas! Só me faz um favor, bem depressa e escondido. Me batiza. Só falta isso para virar santa.
Padre João, caindo de amores por Lourdinha fez que ia rir... ela interrompeu qualquer possibilidade de riso.
-Ou me batiza ou vai embora e é agora mesmo.
Padre João tentou dizer que se acalmasse, se aproximou aos poucos, mas ela, arredia, aumentou o tom de voz
- E se você não fizer o que eu to pedindo... nunca que eu vou deixar meu Deus lhe receber no céu. Assim que eu virar santa ponho seu nome no livro e te proíbo de entrar. Entendeu Padre João?!Ouça o que eu digo. Se não for você vai ser qualquer outro e como quem batiza santa já é, quase automaticamente, santo... veja a oportunidade que vai perder!
Padre João, doido que era por Lourdinha, só não tão doido para perder a batina, a vaga no céu ou a chance de ser santo, colocou um pouco de agua no copinho de cachaça que Lourdinha segurava, abençou a agua e a batizou:
-Maria de Lourdes, em nome do pai, do filho e do espírito santo.
A noite já caia e Padre João precisava correr para rezar a missa das seis. O sermão sobre Maria Madalena lhe trouxe sonhos à noite.
Às seis e meia Lourdinha recebeu o velho Amaranto no seu quarto.
Ele doido para vê-la pecando, quando soube que a moça seria santa a pegou no colo e disse:
- Venha minha santinha, venha, que quero ver você fazer milagre dos meus pecados.
Lourdinha riu, tranquila, depois acendeu uma vela, não sem antes derramar a cera no velho Amaranto, penitência pelos pecados e a colocou no altar, iluminando o sorriso da santa. Quase tão mistérioso quanto o de Lourdinha... talvez também houvesse outra santa antes dela.
quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008
Confessionário
terça-feira, 26 de fevereiro de 2008
faz
me aparece, me impele, me entorta e me entorpece.
me envolve, me solta, me acende e me devolve.
me enlaça, me enseja, me beija e me abraça.
então desimpeço.
me dispo e me disponho.
despo s s u o - m e.
suo frio.
sôo diferente.
sou.
sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008
Alhures
Percorro espaços que não são meus
Em verdade, nada aqui me pertence
Assim como eu pertenço a nada
O que me enlouquece
Em paralelo, aquece:
Não ter responsabilidade sobre o ser
Não sofrer por aqui não caber
E eu sou toda invasão dos outros
Busca incessante de identidade de mim
Em pequenas frestas esquecidas,
Abertas.
Invado sem escrúpulos:
Suas roupas
Seus gestos
Seu cabelo
Tudo o que não é meu
Certa que sou de que não há nada aqui há tempos,
Me debruço em fantasias
Sem remetentes,
Que me comovem em sutis lembranças
Do que não mais é.
Não decifro.
Não desenrolo.
Só desaconteço.
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008
Qual o doce mais doce?
As bruxas conversavam.
-Experimenta o meu veneno.
Pingou uma gotinha na língua.
-É doce...não pode ser veneno.
- Ah é?!Então, experimenta beber perfume de flores para ver se a doçura não mata.
-Mata nada. Oque mata é o alcool... e não a essência.
-Então come trinta bombons pra ver se não morre...
-Não de doçura...
-Pois, quer apostar que te mato com doçura?
-Duvido. Duvido. Duviiii...
-Ei, não repete três vezes que você sabe que quando fazemos feitiço três vezes é a conta certa. E não estou disposta a ter uma dúvida passeando aqui pela sala... dá um trabalhão depois. É pior do que dragão.
-Mas então... prova que me mata com doçura.
-Ah! Agora fiquei com preguiça...depois.
-Tá vendo! Não pode! Não pode! Não pooo...
-Eiiii.... segura essa boca! Que mania de atrair complicações! Já te disse repitiu 3 vezes e pumba... lá vem a impossiblidade... aquele bicho gigante... pra se livrar depois da um trabalhooo
-Ai, você é muito chata, viu? Nunca vi!
-Viu sim! Aqui óó! Mas tá certo então... te ensino o meu veneno doce.
A bruxa abre um frasquinho e joga no caldeirão. A outra bruxa observa atenta.
-Pois então... toma do meu veneno.
-Mas... você disse que mata... ai eu vou acabar morrendo se for verdade... não quero pagar um preço tao alto pela minha descrença. Que medo, que medo, que meeee...
-Psiuuuuuu... não repete! Esse tal de medo é muito carente... ele começa pequenininho e de repente você nem mais sai de casa para ficar cuidando dele. Prometo que se você morrer de doçura eu te trago a vida de novo.
-Hum, tá certo então. Mas promete, promete, promete???
-Prometo, prometo, prometo. Pronto, não tem volta. Tá ali o compromisso já sentado no sofá!
Gut Gut Gut
-Ahhhh... me sinto tão bem com esse seu veneno! Nem parece veneno. Me sinto tãoooo....doce!
-Te dou três dias e a doçura acaba contigo.
-Mas como? Não pode ser! É tão bom ser doce... até Merlin o gato veio me fazer carinho atraido pela minha doçura.
-Doce ilusão.
-Leite, gato Merlin? Claro que eu providêncio leite para você, novelo de lã,sim claro!Quer carinho? Sim sim!
Três dias depois.
-Compromisso. Chama a bruxa para me salvar. Estou me sentindo tão fraca,cansada...estou tão enjoada que parece que comi uma barra inteira de chocolate branco sozinha.
-Pessoas doces acreditam em promessas... Promessas e compromissos não são sempre cumpridos. Estou tão ocupado agora com outras coisas, bruxa doce, que você ficará para segundo plano.
-Mas... em voce eu acreditei Sr Compromisso, em você depositei a minha vida. Se você não chamar a bruxa eu morro de doçura. Não aguento mais. Me sinto mais doce e enjoada que chocolate quente.
-Olha, vou te dar uma dica bruxa doce. Seja doce... mas nao seja excessivamente doce.Olha... não vou poder te ajudar não bruxa doce...estou cheio de outros compromissos inadiaveis.
-Tudo bem Sr compromisso, eu entendo o seu lado... Estou agradecida pelo conselho... espero hoje ainda ter vida para por em prática... Bruxa, Bruxa, Bruxaaa
-Ai Meus Deuses! Quase não da tempo de me enrolar na toalha.
-Desculpe, amiga bruxa, mas preciso de você.
-Ah! Bruxa doce! Mas você é muito da enjoada, viu?! Não vê que está me atrapalhando! Estou lá, animada na minha cantoria no banheiro e voce me chama porque tá morrendo de doçura.... Ah! Me poupe viu??
-Mas Dona Bruxa, me desculpe o incoviniente...mas só posso contar com você...
-Comigooo??? Nao nao na...ops... não quero o não aqui em casa hoje... ele demora muito pra se tocar da hora de virar sim...
-Tudo bem , Dona Bruxa... morrerei de doçura... aqui quietinha, resignada no meu canto, sem ninguém nem notar. Não quero incomodar mais ninguem... Desculpem por existir...
A outra bruxa desapareceu e a bruxa doce começou a chorar. Suas lágrimas eram tão, tão, tão doces que as formigas começaram a devora-la e ela sem coragem de reagir foi feita de almoço.
-Ai ai ai... Onde será que anda a bruxa doce?? Sai dai Gato Merlin! Ossos??? Será??... Tomara que ainda dê tempo. Preciso tanto da companhia da bruxa... doce ou não... não suporto viver só nesse casa.
Então a bruxa recolheu os ossos, os limpou, removendo o resto de doçura e colocou um por um no caldeirão. Completou o caldeirão com muitas batatas doces e...
-Ai, que caldeirão pequeno!!! Me tira daquiiiiii...
-Bruxinha! Queria amiga bruxaaa... que bom ter voce de volta!!
-Doce de batata doce? Há quanto tempo não vejo isso aqui em casa! Que forma mais inusitada de quebrar um feitiço!
-Pois é... não sabia como fazer...então achei que as batatas doces, do doce mais doce, talvez neutralizassem sua doçura! Acho que funcionou! Mas então, como foi ser doce?
-Foi assim... docemente mortal! Mas sabe bruxa... o que mata não é a doçura não, não é a essência que mata... é o alcool... e no final arsênico parece açúcar. Vai um cafézinho?
terça-feira, 19 de fevereiro de 2008
Calma
Uma poesia, uma arte ou uma crônica? Não sei, tanto que deixei pra colocar o título por último, como manda o figurino e a minha professora da 4ª serie no Universo do Guri.
sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008
Carta
Querida,
"Quando olhaste bem nos olhos meus..."
Acordou ainda zonza do que vivera na noite passada. Não sabia administrar esses pequenos vícios humanos, há um tempo se adaptara ao que de costume a lei permite, mas é confuso, às vezes, pensar que a lei, que foi inventada, pode autorizar pensamentos interessantes sobre a possibilidade de se perder a consciência. E era isso que buscava, já sabia. Perder a consciência mesmo que por algumas horas, sem que causasse um dano a sua integridade moral, porque, assumemos, não passa de uma questão moral, e nesses instantes milagrosos de meia ausência de censura, achar-se imensa, escapando por todos os poros e flutuando entre desejos, olhares, toques e gozos.
Mas era interdição. Todo o resto era interdição e o que lhe restava causava enjôo, não dava certo todas as vezes, causava sono também, e vez ou outra sua pressão despencava nos andares da alma... Dessa última conseqüência não reclamava, sentia como mais uma forma de se abster do consciente.
Fora a vontade que lhe tomava todas as vezes que existia a possibilidade de não se medir, era só cautela. Vivia escondida nos meandros de si mesma, querendo que outros a vissem sem precisar se mostrar, querendo ser uma lente transparente que chamasse atenção pelo cheiro, pelos gestos e pelo jogo dos olhos. Mas sem precisar se desdobrar em palavras e nomes e títulos e glórias. Queria o reconhecimento da beleza singular de todas as almas, em sua sutil singularidade de ser banal... quando, de todo modo, nunca se é; queria olhos que se voltassem até ela pelo perfume de sinceridade que queria exalar para o mundo, não uma sinceridade dessas que fala demais, mas só a simplicidade de não ter que provar. E sempre que procurava exalar-se de si, era na tentaiva de deixar essa mistura transparecer a outros olhos e aos seus mesmos.
Pois bem, havia então o estrangeiro esquisito, e ele dava calafrios por prestar atenção demais. Estava atento a cada detalhe, a cada cor que ela usava, nos modos que cruzava as mãos e as pernas, no jeito em que tocava o cabelo, na expressão dos olhos e no suor que corria sempre que ficava tímida. Era estranho porque eles pouco se conheciam, ela pouco o conhecia, ela quase não o via, e ele parecia saber tanto, era como se ele pudesse desvendar nela o que ela queria que o mundo visse. Eram os detalhes. O mundo é composto de detalhes, ela semrpe pensou, mas ele tornava isso real. E não havia nenhuma ligação entre os dois, não havia afeto, não como de costume, havia uma curiosidade assustadora, e ela se sentia lida por ele, mesmo sem trocar mais de uma dúzia de palavras. Aquele estrangeiro que ela não sabia de onde vinha lhe causava a sensação que queria ter quando se embriagava, sem nunca se embriagar. Ele era a personificação do que ela queria dos outros . Era um simples jogo de ego. Era só isso e assustava por ser o reflexo que ela queria de seu próprio ego. Ela era, através da fala dele, a representação do que ela queria ser para os outros, então de algum modo ele provava que tudo que o que ela desejava quando bebia, podia existir. Sim, se alguém podia capturar aquela fotografia, aquele filme que ele conseguia dela, é porque de algum modo ela conseguia exalar aquele perfume. E era simples para ele demonstrar isso, apesar de mal se conhecerem, de não existir o comum afeto e de ser assustador.
E então, quando seu desejo se via refletido e reproduzido por aquele corpo estrangeiro, ela não sabia mais ser e acordava em ressaca da noite anterior.
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008
rouco
havia já algum tempo, ele deixara de usar relógio. de pulso. pois seu celular permanecia consigo o tempo todo. mudou sua proteção de tela para um relógio digital. um paradoxo na linha evolutiva da tecnologia: relógio de bolso. não tinha certeza se obtinha o resultado almejado: a ansiedade aumentava com toda aquela movimentação para olhar as horas. passava já das sete e meia e no entanto o trânsito em sua província com síndrome metropolitana matinha-se congestionado. não que estivesse lento, estava parado! pensava em quanto tempo havia perdido, literalmente, naquele ônibus. sem poder fazer absolutamente nada. olhou para suas pernas e mudou de idéia. descia no próximo ponto, bem distante de sua casa.
ah! a sensação de liberdade era incrível... com seus passos tranqüilos ele sorria enquanto ultrapassava todos os carros que berravam por suas buzinas a epidemia de estupidez. sentia pena, eles não tinham motivos para salvar seus dias. o dele havia sido iluminado pela presença de um amigo afastado, mas que tirara um dia para curtir a amizade e ser útil no que fosse preciso. haviam bebido. havia um porre de rum e uma ressaca iminente. seu rim havia trabalhado bastante até então, resolvera suar um pouco. não achava ruim.
parou de olhar os homens. tentava recuperar o olhar virginal sobre as esquinas de sua cidade, aquele olhar sempre atento e admirado com o novo que as crianças e os turistas sempre têm. subiu na bancada que boredejava a praia: um ébrio buscando o equilibrio na beira do abismo da areia branca que antecede o mar escuro e afasta o asfalto.
cantava alto, sozinho e invisível, apesar de quase louco. só ele ouvia. caminhava de olhos fechados por alguns segundos e despertava às gargalhadas. o céu clareado pela lua senhora de si. só ele viu. "deixo que o mar mergulhe em mim" gritava aos ventos que sopravam surdos enquanto abria os braços de espuma branca para acariciar a areia. tirou a camisa e refrescou o peito. "deixo que a lua me beije, me deixe!" um beijo longo estalando luz por todos os lados. só ele sentiu. correu nu para o mar recitando a poética do ritmo das cores, solta. solto. entrou no escuro e nunca mais foi visto.