quinta-feira, 27 de março de 2008

"Oh boa noite pra quem é de boa noite, oh bom dia pra quem é de bom dia!"


Seu Chico, que coincidência, estava lá também. Nunca imaginei encontra-lo em uma situação tão inusitada, batendo palma em festa de Cabloco. Pois é. Seu Chico era homem de pouca ação, de pouco sonho, de pouco dinheiro, mas tinha algumas qualidades, das quais se ressentia e queixava, por exemplo, ser sensivel. Nesse dia, em que apareceu no terreiro foi morrendo de medo das entidades perceberem a sua vulnerabilidade e descerem nele para dar recado ou aproveitar a festa. Depois de muita insistencia da sua senhora ele decidiu arriscar-se, a comida de graça valia o esforço. Sandalia no pé, subiu o morro, melou-se no barro. Encheu a barriga e rodou sorrindo no salão, sentindo os calafrios no corpo, cada cabloco em um poro.

quarta-feira, 26 de março de 2008

o rastro dos ratos

tarde da noite. últimos ônibus na velha estação central. rostos exaustos aguardam. ratos fartos passeiam. restam ainda alguns poucos baleiros: olhos vermelhos e uma cara impaciente de quem não agüenta mais dar informação. passa um engraxate. está descalço. está drogado e não sabe para onde nem como vai. trapos, plásticos e papéis cobrem corpos que dormem próximos aos pilares.

durante o dia sol forte, pombos suicidas e muitos sons onde vende-se e come-se de tudo. no silêncio da noite uma réstia de luz soturna e o resto: o lixo. o lado bom da miséria é privilégio dos ratos. se alimentam do resto da sobrevida dos outros, fazem festa onde a comida é farta! o chão sujo é um parque de diversões. as reformas são sempre uma promessa, por isso os bueiros não têm grade e eles circulam tranqüilos: o medo é dos humanos. é impossível prender um rato, eles fogem da luz, são ligeiros, são hábeis, escorregadios, são unidos, são amigos, são políticos. sempre conseguem o pedaço de queijo, ou de pizza, antes que funcione a armadilha.

ratos à noite não chamam muita atenção, mas na manhã seguinte, ainda cedo, quandos os mesmos rostos voltam ao trabalho após o sub-sono a que têm direito, é difícil não estranhar o rato morto e molhado na calçada. estranho porque, embora morto, está intacto: nenhum sinal de mordida, sanque ou pancada. de que teria morrido o rato?

bom, resta uma certeza: de fome é que não foi. afinal, no país dos miseráveis só os ratos não morrem de fome.

cinza

O calor andava insuportável. Insuportável. Suava-se mesmo parado. Uma vontade de ficar pelado! O sol pelando no asfalto e seus raios queimando a pele. E ainda não era verão.

Mas à noite vinha a brisa, calma. Sentou-se pra ver o mar. não o viu. O céu também era negro e o horizonte era em qualquer lugar. No lugar das nuvens em seu passeio de sopro, a branca espuma das ondas deslizando devagar. Poucas estrelas e uma lua, nova.

Pedras pretas perto do esgoto, a lançar sombra para os ratos, rápidos. Ligeiro também o siri dançando camuflado na areia.

Era a vida passando, quieta. E ele parado, só pra ver. Não fez planos, não pensou no passado, não pesou o futuro e nem pisou na saudade. Não pensou em nada. Sua respiração acompanhava o silêncio. Encheu-se de vida, só. Veio o sono

E o domingo nasceu-lhe de um céu branco, vento brando e chuva invisível.

sábado, 22 de março de 2008

Poetα, eu hoje estou feliz α beçα
O meu mundo ficou lindo
Eu colho flores nos jαrdins

αlem dαs muitαs outrαs que eu recebo
Que você tαmbém me dαvα
O que fαltαvα erα o jαrdim

Sαbe dαquelα flor pequenininhα
Que de lindα virou rosα?
Creio a rosα mαis bonitα;
Tαmbém quer o seu jαrdim

Me disse outro diα, não sorrindo
Que seu mundo tαvα triste
Que se Deus de fαto existe
quero um desses só prα mim

quinta-feira, 20 de março de 2008

Flutuador

- Bicho, conheci uma pequena que é a sua cara. Você não faz idéia do quando ela combina com você! E o melhor... é da Bahia. Você precisa conhecer...
Duas coisas aconteceram simultaneamente quando Carlos leu aquelas linhas na carta enviada por seu irmão mais velho: Um sorriso explodiu no rosto e uma música começou a tocar na sua cabeça:
"ai, ai que saudades eu tenho da Bahia
ai, se eu escutasse o que mamãe dizia..."
Como gostava daquela terra! E como gostava mais ainda das mulheres daquela terra... eram leves, sem frescuras, mas frescas... e faziam maravilhas na cozinha... Carlos sempre associava um bom amor com um bom prato de comida... tinha vó baiana, imagina como é?! Faziam outras maravilhas também, essas baianas, e ainda sabiam de cafuné, orixá, acarajé, samba, rede, Itapoã... entendiam direitinho de ser mulher, tinham aquele mistério nos olhos e aquele balanço nos quadris... aquele jeitinho...
Nas férias seguiu para Bahia e dessa vez a viagem foi mais longa do que imaginava. A verdade é que já tinha esquecido da tal pequena, era morena... da tal morena, quando chegou na "Terrinha". Foi direto pra Ribeira, depois pro Pelourinho... e fez um tanto de coisa das quais sente saudades hoje... Ah... aquilo que era Bahia! Mas nem lembrou da menina... talvez por que seu irmão já tivesse deixado de namorar a irmã da moça e nunca mais tivesse tocado no assunto.
Mas como o acaso na Bahia gosta de resolver esses desencontros... Numa tarde, dessas bem quentes, foi, meio contrariado, com um amigo, desses bem de vida da Vitória, passar a tarde no clube. Coisa mais burocrática, pensou... Preferia a liberdade do Porto da Barra, poder nadar até os barquinhos e ver o por do sol do lado de todo tipo de gente... mas paciência... o amigo queria ir para o clube... entao seguiram para o clube. Com sorte o convenceria de descer para o Porto da Barra na hora do por do sol... E foi nessa tarde que o destino resolveu promover o encontro de Carlos e Tereza.
- Essa é minha namorada, Tereza.
Tereza sorriu, estendendo a mão, logo soube que o bonitão era o tal rapaz de quem sua irmã tanto falava.
- Namorada não Teodoro, nada disso... só depois que você pedir pra papai.
Carlos olhou Tereza e não sabia se ela tinha falado sério quanto ao seu estado civil... mas isso era coisa pouco importante. Não que não tivesse esticado os olhos pra ver melhor a garota... e era mesmo uma preciosidade... mas olhou pro mar e decidiu atravessar a nado até o flutuador. Alias... ouviu na famosa "boca miúda" que entrar pra família de Tereza não era coisa fácil... tantos tios, tantos primos, tanta gente que se perderia da mocinha no meio da multidão. Deixasse Teodoro lá com seus esforços.
Barriga pra cima, sentindo o sol da Bahia esquentar todo o corpo... era tempo bom... Tereza e mais uma, que não lembra mais o nome, chegaram nadando no flutuador. E fizeram tanto charme, mas tanto charme, e a danada era mesmo charmosa... que Carlos nao resistiu e pediu o telefone. Depois sairam, uma, duas, três vezes. E Tereza era jeitosa... era Carlos hoje, era Teodoro amanhã... depois tinha uma folga... e começava o rodizio... pra ser bem justa... Carlos sabia de Teodoro... Teodoro?!... Problema dele....Surgiu até uma lenda que Tereza sempre levava dois sapatos na bolsa. Uma sandália baixinha, pros dias de Teodoro e um salto mais alto, estilo boneca, pra se encontrar com Carlos.
E finalmente chegou a noite do baile. Aquela era a festa mais esperada do ano e Carlos se arrumou apressado... era dia de Tereza, não perdia isso por nada. Ligou para a amada avisando que ia demorar um pouquinho... que tinha que buscar umas amigas do Rio antes de pega-la em casa. Carlos era carioca. Tereza se chateou, fez birra, fez bico e finalmente disse, toda independente, me encontre lá então. Carlos obedeceu, não sem insistir... mas conhecia a pequena e seu orgulho era dos grandes.Chegou quando a banda já tinha começado. A banda era boa. Ia dançar agarrado na cintura de Tereza a noite toda, cheirando seu pescoço e tendo arrepios. Desceu o elevador do clube arrumando o cabelo, o terno, o sapato... queria fazer bonito. Quando a porta do elevador abriu, se deparou com Tereza. Linda. Vestido rosa, cabelo solto, ombros a mostra. E ao lado de Tereza... Teodoro. Filho da puta. O sangue subiu. Carlos sentiu o corpo todo tremer, esquentar. Não conseguia pensar em nada. Era bicho. Era bicho ferido. Era homem apaixonado. Espumando, apertando os dedos na palma da mão, foi andando em direção aos dois. Uma das amigas tentou segura-lo, a outra tapou os olhos para não ver a tragédia. Cena de filme. Camera lenta. Tereza olhou para trás, viu Carlos vindo. Teodoro recuou nas investidas e se preparou pra porrada. Para apanhar, bem possivelmente. E Tereza continuou olhando para Carlos. Sorriu, mentiu suas feições preocupadas... Só não conseguia controlar as pupilas. Os olhos dele baixos... achou que estava mesmo decepcionado, não era sua intenção deixa-lo triste... queria só uma ceninha de ciume pra se vingar... Mas estranho... Carlos tinha um sorriso, de canto de boca, é verdade.E finalmente chegou bem perto dos dois... Pegou Tereza, 1 cm de distancia, a respiração dos dois falhando. Agarrou mesmo, no meio de todo mundo, e deu um daqueles beijos... daquels demorados... que os antigos e as crianças chama de chupão.
E foram esses trinta segundos que mudaram toda a vida de Carlos e Tereza. Ou que definiram o que o acaso já queria.
E como estava bonita com aquele sapato alto de boneca... flutuava nos braços de Carlos.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Santa Puta

A príncipio a idéia de se encontrar horas sozinha num ambiente semi-conhecido, lotado de pessoas, olhares e pecados foi como um primeiro passo para a desistência... Mas promessas são promessas, pelo menos para uma garota boba que acredita e espera dos outros as mesmas reações que tem, sem notar, apesar de umas boas quedas, que existem chãos mais escorregadios que outros e sapatos menos aderentes...
Então, para não perder a coragem de transformar solidão em autosuficiência, escolhe-se a roupa mais bonita, a mais alva, a mais tentadora, a que deixe transparecer, apesar de qualquer boato, a vocação para olhar nos olhos e enlouquecer... tanto o alheio quanto o interior. Põe-se a maquiagem mais forte, que ilumine os traços do desarme, levante os cílios, corrija o imperfeito e conceda soluços vísiveis às mentes aguçadas. Após longos minutos de primeiras impressões, o que resta é a presença inacabada do que ainda será percorrido pelos ponteiros...
Infelizmente, aturar a todos após mais de seis miligramas de álcool por litro de sangue torna-se um fardo tanto quanto insuportável para uma velocidade de 100km/h numa cabeça perturbada... Por livre escolha entrega-se à sedução da perda de consciência na tentativa de criar um mundo mais agitado por algumas horas, danças menos culpadas talvez... Aquelas frutas esmagadas no copo fundo, o mau-humor de quem servia, a quantidade de açúcar, a percepção dos pequenos grãos mal misturados ao componente principal, a não familiaridade dos rostos, todos os gostos, os sabores, as provocações, os pensamentos proibidos, só pensamentos, as idéias, o movimento, a crueldade, a impaciêcia, as confissões... Uma noite metade frustrada, metade conseguida...
Sem sentimentos.

domingo, 16 de março de 2008

A Casa Navio

...os cabarés daquela época já não eram mais aqueles locais onde os maridos iam, a fim de dançar com polacas, tentar a sorte no pôquer, ou prosear sobre a sociedade, ao sabor de um scotch, ou uma cuba. Já nesses anos, os cabarés eram locais de prostituição explícita. O rufianismo vingava e enriquecia figurinhas carimbadas daquela sociedade emergente, a exemplo das donas das casas que se situavam a altura da Praça da Sé, de Nazaré e da Ladeira da Montanha. Maria da Vovó, fiscalizada habitualmente por milícias formadas desde militares até forças especiais, não era um local hospitaleiro. Já o Meia Três, ah sim... Seria impossível paraVitor não se sentir bem naquele local. Desembargadores, médicos e engenheiros, naquela penumbra avermelhada, se confundiam com os imberbes rapazes que iam observar e ter com as simpáticas moças daquele cabaré.
Não raro, em meio a um reboliço em volta de uma mesa, encontrava-se nada mais nada menos que Jorge Amado, que na década de 70 ja era conhecido internacionalmente pela sua prosa e romance. Ele estava por ali mesmo era juntando mais fatos para adubar a sua fértil mente que retratava aquela sociedade como ninguém.
Mas não era no Meia Três que Vitor e sua tchurma se encontravam na maioria das vezes não. A ida para o Centro era esporádica, ja que a Pituba os servia tão bem, com seus barzinhos e boates. Quantas vezes, na intenção de um papo e de uma batata frita, já não se depararam com showzinhos de Daniela Mercury ou então de Kid Abelha e os Aboboras Selvagens, no Canteiros?
Quando não estavam por aí, é porque haviam precisado passar na Casa Navio e estavam se recuperando. Morava na Casa Navio, uma casa de arquitetura moderna, em formato de navio, um dos maiores nomes da medicina local e nacional: Dr. Bureau era quem aplicava as injeções de penicilina nos garotões, que a certa altura já estavam acostumados até com as bem humoradas brincadeiras do urologista, que sempre se despedia deles dizendo que os aguardavam em suas velhices, para aquele tradicional exame... E foi assim que curtiu a juventude, os moradores daquele bairro doce como suco de mangaba. Doce como pe-de-moleque, doce como pituba, bafo, exalação, maresia...

quarta-feira, 12 de março de 2008

Só mora mainha e eu.

Soraia tinha alguma coisa que me lembrava alguém que eu não lembrava quem era. Ela não esperou que pedisse que sentasse... puxou a cadeira. Arrumada, de maquiagem, cabelos presos, parecia mais bonita do que na foto. Menos pálida, talvez.
-Bem... isso aqui é mais uma conversa do que uma entrevista. Fala um pouquinho de você.
- Meu nome é Soraia, mas mainha queria que fosse Sereia. Mas ai não podia, sabe...
Olhei desacreditada.
- Pois então, meu nome é Soraia, sabe? Mas podia ter sido Sereia... e talvez não tivesse mudado muita coisa... talvez tivesse....
Pisquei.
- E se tivesse mudado talvez eu tivesse uma estrela menos miseravel, sabe? Talvez fosse uma estrela do mar e tivesse mais perto das minhas mãos... até podia virar enfeite.

terça-feira, 11 de março de 2008

dia, dia

levanta no susto,
ele já perdeu a hora
e vai sair
sem tomar café.

suor no rosto,
ansioso de agora,
mesmo dormindo
ele já tá de pé.

almoça na esquina,
passeia as meninas,
talvez até pense
em sua mulher.

chega cansado,
acha até engraçado
se perder dentro
da vida que quer.

todo dia é o mesmo dia...
todo dia é o mesmo dia...
todo dia é o mesmo dia...
todo dia é o mesmo dia...

segunda-feira, 10 de março de 2008

Desalento

Sônia era sempre doce. Sua voz tão sutil e aguda chegava a dar pena. No entanto, ela era alta e parecia mais velha do que realmente era. Suas roupas mais largas que seu corpo, este sempre coberto, sempre reservado, escondido.

Ela não tinha tempo para nada, seus almoços, sempre às três da tarde, denunciavam a escravidão por uma vida pouco maravilhosa. Sônia cambaleava entre momentos de risos e piadas e os comentários mudos, acompanhados de feições pouco entusiasmadas em dias de sufoco. Nos últimos tempos, suas olheiras cresciam, seu rosto parecia envelhecer um pouco mais. Não havia sorvete de baunilha com chocolate que a animasse ou reviravoltas no mundo que lhe tirassem do sério.
O que se tem aqui é uma jovem, deixando de ser e esquecendo o que a faz ou fazia mudar de rumo. Sabe-se só o que está em volta de Sônia, mas não se sabe o que há dentro. No fundo, no fundo, pode ser só impressão de terceiros, sua alegria pode mesmo estar camuflada e manifestar-se diferente! Suas olheiras podem ser de excitação por não querer dormir e perder parte da vida, sua voz doce pode ser sinônimo de euforia ou doçura mesmo...
De fato, não há fatos para serem contados sobre Sônia. Ela é para este aqui, apenas um corpo cansado.
Pode ser que Sônia se desorganize um dia, largue pelas ruas a montanha de papel que vive a carregar, rasgue sua roupa e comece a andar e cantar mais alto e com mais força do que ela supunha ter. Qualquer dia, este fato vai se suceder.

domingo, 9 de março de 2008

Para Explicar Melhor

Diante da tela do word em branco ele já sabia que a tarefa seria muito difícil. Que teria que espremer a alma pra falar o que sentia. É por que na arte você às vezes não precisa ser tão prolixo. Às vezes se quer escrever um sentimento e se escreve. Mas a arte - já dizia uma de suas funções - é infinita. É sempre uma obra aberta, livre para interpretações. Deve ate ser por isso que é tão fácil de apaixonar por poetas. Se bem que essa máxima só funciona com os outros. Ou seria com os outros poetas mais bem afeiçoados... bom, o que importa é que quando se quer falar de um sentimento explicando ele a fundo, objetivando o que se é passado, evitando ao máximo as amigas metáforas, ai se torna um pouco mais difícil. Até por que metáforas são metáforas, e acabam por, devido a sua própria essência, se afastar do que se é realmente sentido para só depois, por analogia, se aproximar.

O fato é que o poeta havia perdido. E perdeu feio. A derrota feia para os leigos é aquela derrota em que se estava ganhando, por vezes até com sobra, mas no finalzinho a defesa falha e o que seria ótimo se torna horrível. O que era bonito se torna triste. E o que era triste se torna solidão. A solidão se transforma em wisky. O wisky muda pra cigarro, e por fim, quando se acorda se percebe que a realidade é bem pior do que o sonho que havera tido.

A musa era tão perfeita. Musa se parece com música, e das bonitas. Uma menina tão linda... cabia no abraço. Dava pra proteger como uma mulher se deve ser protegida. Até se colocar no bolso, nos momentos de confusão, quem sabe. Tão perfeita que não se deveria se desejar nada alem dela. E da família dela, e da casa dela, ninho de amor, amor de carinho, de respeito e de proteção. Engraçado até como se dava pra ser protegido, quando se é tão grande para uma musa tão pequena.

Mas o poeta perdeu. Tanto fez que ela chorou e foi embora. Abusou da regra 3, achou que o menos valia mais. E ela sumiu mesmo, desapareceu de vez. E já não adiantava chorar. Ele chorou bastante, mas se tornou ineficaz. A saudade e a esperança são lagrimas, quando na sua fase liquida. Mas já não havia esperança pra ninguém. Alem disso a saudade, que foi o que restou, se transformou em angústia e ao invés de lagrimas o que se sentia era como se existisse um ovo de avestruz entalado na garganta.

Mas o que eu queria explicar na verdade não era esse sentimento de perda. Eu queria falar de um sentimento mais bonito. Do amor. Dessa vez o poeta não poderia falar do amor sentido por ele, até por que esse amor que será explicado nas próximas linhas é um amor muito maior do que qualquer coisa que ele já sentiu.

A musa encontrou alguém. E se apaixonou denovo. Já não era uma paixão de mãe, de cuidar do filho menor. Alias foi a mãe ate que disse que era um amor maduro. Mas mesmo dizendo isso ela não deve odiar o poeta por isso. A essa altura a musa, que eu vou chamar de moça, já amava de com força. O esforço para ficar longe do poeta já quase não existia. Acho que por que o poeta sabia muito falar de amor, o que encantava a moça. Mas o poeta ainda não havia aprendido a amar daquele jeito, e por sinal, nem deve ter aprendido. Se ele não tivesse tido uma ajuda, talvez não pudesse definir tão bem aquele amor: o amor para a moça é agora sinceridade. Se já existia o amor, a transparência seria a grande responsável pelo seu crescimento e pela sua manutenção. Não é do tipo paranóia. Mania de limpeza, mania de colecionar, mania de ouvir musica, mania de fumar... a sinceridade sempre existiu para ser hábito. Nasceu assim, de repente, irmã dos sentimentos mais puros. Algumas pessoas sentem o cheiro dela, e chegam até a alcançar a sua harmonia, não por que ela é explicita, mas por que têm a super-capacidade de captarem-na no ar. E no mar e nas coisas bonitas da vida também.

E sequer bastou praquele poeta burro a carta que a moça mandou pra ele alguns anos atrás, outros a frente do rompimento. O poeta chou que era um sinal, uma coisa mágica de outro mundo (o mal dos poetas)... ficou feliz e orgulhoso, e ate respondeu. Foi preciso que a moça explicasse tempos depois, que havia escrito a carta na frente do seu amor, que a contragosto aceitou, mas entendeu a sinceridade do seu teor.

Dizia a carta, não em versos, mas em prosa, algo mais ou menos assim:

“poeta, eu hoje estou feliz a beça
O meu mundo ficou lindo
Eu colho flores nos jardins

Alem das muitas outras que eu recebo
Que você também me dava
O que faltava era o jardim”

obs.: Feliz Dia das Meninas, porque "mulher" é como eu me refiro às congeneres as quais eu não conheço ;)

quarta-feira, 5 de março de 2008

Uma flor de ar

Fim de tarde na pracinha de Ilhéus. Jorge Amado pintado no muro, esperando e nada de Gabrielas. Alguns turistas. A fila do sorvete era do tamanho da ansiedade da menina. Devia ter dez anos, mas corpulenta parecia ter 13. Ou ao contrario... teria uns 13, mas infantil parecia ter 10. Não tenho certeza do nome... ouvi a irmã mais velha chamando, acho que era Joana. Joana não se aguentava de excitação naquela tarde quente e lenta. Se tivesse um corda pularia por uns 20 minutos sem parar e não ficaria exausta. Se tivesse um bambolê, o rodaria e afinaria a cintura. Mas não tinha nada disso e a fila do sorvete era longa. Mas o inesperado aconteceu. Quando seu irmão apontou o dedo sujo de chocolate para o meio praça, Joana se apaixonou. Ele parado, "brincando" de estátua, todo prateado, pintado com uma tinta reluzente que em pouco tempo, com tanto sol, lhe renderia um inevitável câncer de pele. Devia ter o dobro de sua idade e muito mais paciência. Talvez mais fome, não fome de sorvete, mas de comida... com certeza menos ansiedade. O seu trabalho requer muita concentração e controle, mais do que tinta e arte. Por trás dos óculos escuros ele não percebeu quando Joana o olhou fixo e jurou amor eterno, até por que foi algo platónico, típico de meninas entre 10 e 13 anos de idade... que se você perguntasse, ouviria Joana jurar de pé junto que não sabia do que se tratava e que preferia as bonecas, fazendo cara de nojo. Acontece que Joana se aproximou... e então ele a viu. Joana, cabelos rebeldes, cintura sem curvas, dentes soltando da boca, gestos grandes e desajeitados, sobrancelhas e pernas peludas... Joana, presa no corpo indeciso de uma criança-quase mocinha. E ele, estátua... esperando uma moeda da pobre donzela...
A moeda chegou, patrocinada pela irmã mais velha que ficou com medo de ver a pentelha chutando a canela do pobre rapaz. Primeiro o irmão pequeno jogou uma moedinha de uns 50 centavos na latinha que fez uma soada seca. Mas na vez de Joana... ela começou o jogo. Pegou a moeda e escondeu entre os dedos. Olhou fixo, fulminando as lentes dos óculos escuros dele. E se negou por alguns segundos a entregar. A estátua não respondia. Não esboçava sorriso. Joana segurou a moeda bem na altura dos olhos dele. Não disse nada. Ele continuou imóvel. Seu pensamento fixo no som da moeda. Seu corpo querendo logo executar friamente e mecanicamente os passos ensaiados do agradecimento, lucrar. E nada de Joana ceder. Desafiante, brincava de seduzir. Finalmente Joana entendeu o que estava fazendo e quis chutar a canela dele... Quase o fez mas o irmão a convenceu a entregar logo a moeda... para ver o que acontecia depois. Ela fez menção de roubar a moeda para si... Quando finalmente a jogou, tímida, corando. Nada aconteceu de imediato. Nem um movimento.Por pouco não pegou a moedinha de volta. Ficou decepcionada. Então era essa a resposta ao amor? Aí uma criança de colo chorou. A fila do sorvete andou e Joana se moveu com os olhos tristes. A estátua lentamente agradeceu ao irmão tirando o chapéu, tão lenta quando a sensação da tarde. Tentou acalmar a criança estendendo a mão, sendo que a criança chorou ainda mais. E finalmente encarou Joana, com os gestos "enferrujados" de quem esqueceu o amor, tímida esticou a mão oferecendo uma flor de ar. Joana baixou os olhos, não soube onde por as mãos, a flor e o coração. Tomou o segundo sorvete da tarde, pulou e correu pela praça até cansar e deu adeus a cidade.

terça-feira, 4 de março de 2008

versículo

foi assim: deus criou o mundo, com seus rios extensos, suas montanhas grossas, seus ventos fortes. enfim, encheu tudo de terra, água e ar, caprichando aqui e ali e inventando formas. tudo certinho, no ponto. equilíbrio. e o fogo? o fogo deixou para o homem, que criou assim, sem pensar muito, só pra ver algo circulando "por vontade própria".

passou algum tempo e aquele jogo já começava a encher. faltava alguma coisa. então deus, poeta que é, resolveu criar o paraíso e batizou de mulher. pôs um cheiro... um jeito... pôs olhos fundos com mais mistérios que o mar. pôs sobre os cuidados da lua. e pôs tanta vida ali que achou por bem ceder o dom de gerá-la. criou a ironia, o jogo, a mágica. tudo, assim, perfeito.

coitado do homem, a essa altura já feito. como é bobo, coitado. baba tentando aprender a decifrar todos os códigos. e como é babaca! ele é assim, quando não tem o que quer subestima. e convence alguns colegas de que são superiores. alguns. outros as seguem.

e para chegar ao paraíso é preciso redimir-se. deixar de ser homem e tornar-se humano. feito criança que pede colo com sono, aconchego no frio e ombro no choro. miúdo, pequeno, pequeno... só assim é possível alcançar o paraíso, fazer com que ele o ame. e para isso é preciso apaixonar-se e deixar que o resto se faça. entregar-se derretido nas mãos do destino que acolhe e ama.

deus criou o paraíso e pôs o nome de mulher. e achou aquilo tão perfeito que se fez numa.

foi assim que foi. é assim que é.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Entre a inspiração e a expiração

Encontra poeira dele dançando entre seus ares, cintilando fluida e leve. Em encontros descabidos e mal-estruturados esse sopro chega até ela. Mil partículas de sonho, esparramadas pelo vento. Ao redor de seu corpo um redemoinho cintilante de bocas e risos, perdido entre vontades e invenções, fantasias desfarçadas.
E ela dentro, de olhos cerrados, a sentir o arrepio subir pelo dorso, dançando boba e rindo, coberta inteira por todo o envoltório de luz cintilante que a conduz por esses passos inesperados. Um redemoinho gigante de sensações leves e gosto de fruta doce, saindo do pé, andando pelo mundo de lá pra cá, sem fazer sentido, nem hora, sem programar o próximo estado.
Só essa fluidez de partículas de luz cintilantes, conduzindo uma dança incompreensível, sob sensações e vontades ... E seu corpo manso dentro que se deixa e dança até o "não sei quando" chegar.
E ela é.

sábado, 1 de março de 2008


Ele era de Juazeiro. Do norte. Ela também. Do Sul. E ele nem sabia dela. Sabia de cantoria, de reisado, sabia xilografar e gostava do Padim e do Icasa. Ela? Por enquanto não vou falar dela, e sim dele.
Gostava demais de sua vida, e por conseqüência, adorava é claro, a vida. E por ser tão alegre, contente, fazia com que coisas assim estivessem sempre por perto. E por assim dizer era um cara popular e alegre. E por ser tão alegre ele também achava aquele sertão muito alegre.
Tinha por ele dezenas de meninas atrás. Tinha mais uma meia dúzia que não queria ver nenhuma menina atrás. E tinha mais umas duas que de tanto amar já nem ligavam mais...
E ele desceu do sertão e veio pra Juazeiro. Quase que fica por Pernambuco, terra de Danieis e Alceus, mas parece que o destino lhe quis lá na Bahia.
E foi por lá mesmo que ele conheceu aquela uva do São Francisco. Regada gotinha a gotinha, não tinha cara de carranca, e nem andava com(o) as piranhas. Não que isso desagradasse ao rapaz...ele até gostava. Não agüentava ver uma piranha... e se tivesse cara de carranca, então!
Mas aquela baiana lhe tirou mesmo do sério. Cara de linda. Veio calada, onça pintada. Passo por passo, olhando pra baixo; disse oi, beijou seu rosto e saiu.
Não é dizer que foi estranho, mas o que poderia querer ela com um vira-lata daquela estirpe? Sabia de onde veio? Talvez ninguém nunca saiba responder...
E era só se distrair que vinha a pensar nela, e sempre-sempre no final, no crepusculo do devaneio tomava um susto pensando que aqueles olhos de onça tavam a te lapiar o couro, ou então a te lamber o corpo. Mas não tavam...
A onça pintada nem sabia de nada. De instinto e inpirada deu um beijo e saiu. E o cachorro bandido ficou na estrada. Com os olhos fechados de um súbito arrepio.
Pois a uva já sabia dele. Sabia também costurar, cozer e catar feijão. Cozinhar, ainda não, mas gostava de arroz-com-piqui. O olhar era agateado, com as bolas do meio pretas e bem grandes. Quase que não tinha aquela parte branca. E olhava o cachorro bandido sem ele nem saber de nada.
A gata não queria mais leite. Cansou. O cachorro agora queria pintas, queria enfeite. Achou. E de presente muitos outros também deu, praquela felina franciscana.
E ninguém sabe como foi direito que se sucedeu. É como se ninguém tivesse visto o embolar daquela historia, e só o desembolar...Hoje em dia ainda se vê o cachorro vadio por lá. Ele não anda muito querido da onça não, mas em contrapartida não deixa nenhuma raposa encostar nas uvas...

(continua, ou não...)