quarta-feira, 5 de março de 2008

Uma flor de ar

Fim de tarde na pracinha de Ilhéus. Jorge Amado pintado no muro, esperando e nada de Gabrielas. Alguns turistas. A fila do sorvete era do tamanho da ansiedade da menina. Devia ter dez anos, mas corpulenta parecia ter 13. Ou ao contrario... teria uns 13, mas infantil parecia ter 10. Não tenho certeza do nome... ouvi a irmã mais velha chamando, acho que era Joana. Joana não se aguentava de excitação naquela tarde quente e lenta. Se tivesse um corda pularia por uns 20 minutos sem parar e não ficaria exausta. Se tivesse um bambolê, o rodaria e afinaria a cintura. Mas não tinha nada disso e a fila do sorvete era longa. Mas o inesperado aconteceu. Quando seu irmão apontou o dedo sujo de chocolate para o meio praça, Joana se apaixonou. Ele parado, "brincando" de estátua, todo prateado, pintado com uma tinta reluzente que em pouco tempo, com tanto sol, lhe renderia um inevitável câncer de pele. Devia ter o dobro de sua idade e muito mais paciência. Talvez mais fome, não fome de sorvete, mas de comida... com certeza menos ansiedade. O seu trabalho requer muita concentração e controle, mais do que tinta e arte. Por trás dos óculos escuros ele não percebeu quando Joana o olhou fixo e jurou amor eterno, até por que foi algo platónico, típico de meninas entre 10 e 13 anos de idade... que se você perguntasse, ouviria Joana jurar de pé junto que não sabia do que se tratava e que preferia as bonecas, fazendo cara de nojo. Acontece que Joana se aproximou... e então ele a viu. Joana, cabelos rebeldes, cintura sem curvas, dentes soltando da boca, gestos grandes e desajeitados, sobrancelhas e pernas peludas... Joana, presa no corpo indeciso de uma criança-quase mocinha. E ele, estátua... esperando uma moeda da pobre donzela...
A moeda chegou, patrocinada pela irmã mais velha que ficou com medo de ver a pentelha chutando a canela do pobre rapaz. Primeiro o irmão pequeno jogou uma moedinha de uns 50 centavos na latinha que fez uma soada seca. Mas na vez de Joana... ela começou o jogo. Pegou a moeda e escondeu entre os dedos. Olhou fixo, fulminando as lentes dos óculos escuros dele. E se negou por alguns segundos a entregar. A estátua não respondia. Não esboçava sorriso. Joana segurou a moeda bem na altura dos olhos dele. Não disse nada. Ele continuou imóvel. Seu pensamento fixo no som da moeda. Seu corpo querendo logo executar friamente e mecanicamente os passos ensaiados do agradecimento, lucrar. E nada de Joana ceder. Desafiante, brincava de seduzir. Finalmente Joana entendeu o que estava fazendo e quis chutar a canela dele... Quase o fez mas o irmão a convenceu a entregar logo a moeda... para ver o que acontecia depois. Ela fez menção de roubar a moeda para si... Quando finalmente a jogou, tímida, corando. Nada aconteceu de imediato. Nem um movimento.Por pouco não pegou a moedinha de volta. Ficou decepcionada. Então era essa a resposta ao amor? Aí uma criança de colo chorou. A fila do sorvete andou e Joana se moveu com os olhos tristes. A estátua lentamente agradeceu ao irmão tirando o chapéu, tão lenta quando a sensação da tarde. Tentou acalmar a criança estendendo a mão, sendo que a criança chorou ainda mais. E finalmente encarou Joana, com os gestos "enferrujados" de quem esqueceu o amor, tímida esticou a mão oferecendo uma flor de ar. Joana baixou os olhos, não soube onde por as mãos, a flor e o coração. Tomou o segundo sorvete da tarde, pulou e correu pela praça até cansar e deu adeus a cidade.

3 comentários:

cicero disse...

eu acho esse o melhor de todos...

Fernanda disse...

Gosto muito tb!

Daniel Farias disse...

muito bom mesmo.